Três dos oito filhos de Dona Chica foram vítimas de suicídio e ela, há 13 anos, criou outra forma de ajudar pessoas

Dona Chica, 74 anos, é uma mãe que conhece perdas e gosta de caminhar sozinha em estradas vazias para organizar os pensamentos e relembrar a saudade. Às vezes, letra e melodia jorram no pensamento e ela, que sempre trabalhou com a terra, se torna compositora. “Minha cabeça rodava, no meio coração doía, perdi a força do amor, coisa melhor não existia”, cantarola uma das suas composições, dedicada a um filho que nunca esqueceu.  

Nos últimos tempos, Francisca Valdivino, conhecida por Dona Chica em Caetité, no sudoeste baiano, diz: “Acho que desaprendi [a cantar], a música foi saindo de mim”. Ainda assim, Dona Chica canta, porque a música não saiu completamente. “Tem gente que fala que a vida é ruim. Se fosse, eu poderia dizer que era ruim, mas eu te falo que vida é boa, e só resta vontade de viver”.

Dona Chica teve três dos oito filhos vítimas de suicídio, entre 1998 e 2016, e queria compor dezenas de músicas para cada um deles. Fez diferente: mandou derrubar o pé de manga e o coqueiro que existiam nos fundos de casa e passou a receber homens, mulheres e crianças que conhecem a fome.


 
Há 13 anos, Dona Chica promove, na casa dela e do marido, um sopão conhecido na cidade. Não é música, mas ela pensou que fazia sentido ajudar outras pessoas. A ideia veio de um vizinho, que um dia a avistou chorando. “Por que você não dá um sopão? Algo para ajudar?”. Mas, Dona Chica tinha pouco, talvez o suficiente para a família.

“A gente não tinha quase nada e era coisa de casa mesmo. Mas, foi acontecendo e vem acontecendo. Eu passei por coisas, minha filha… mas foi acontecendo”, conta Dona Chica.  

Antes da pandemia, o sopão acontecia três dias por semana. Agora, ocorre às 18h30 das sextas e voluntários entregam a sopa em marmitas. “Sinto falta, saudade porque parece que vejo eles [frequentadores do sopão] chegando aqui”.  

A maioria dos alimentos, hoje, são doados por vizinhos e comerciantes e Dona Chica tem ajuda de duas mães e familiares. “Já teve 60 pessoas aqui na frente de casa esperando o sopão, 38 crianças aqui em pé”, calcula. Ela sonha em transformar o projeto numa fundação. 

Quando o dia chegar, haverá uma placa do lado de fora com o nome “Fundação Dona Chica” ou “Associação Dona Chica”, onde também acontecerão cursos e palestras para a comunidade. A neta Jaqueline Valdivino tenta, desde o ano passado, conseguir a papelada para abrir a Fundação, mas ainda não venceu as burocracias.  

A casa de Dona Chica recebe não só quem precisa do sopão para completar as refeições – ou ter uma refeição no dia. A aposentada também é procurada por mães que, como ela, viram a ordem natural da vida se inverter. “Muitas mães batem na minha porta. A dor de quem perdeu um filho é a mesma”, acredita. 

Para a psicologia, Dona Chica é uma “sobrevivente”

A psicologia chama aqueles que foram impactados por um suicídio de “sobreviventes”. Eles são enquadrados no grupo de risco ao suicídio, formado ainda por vítimas de violências históricas – como a população negra e LGBTQIA+ -, dependentes químicos, depressivos e vítimas de algum trauma grave. Esse grupo precisa de acompanhamento psíquico ao longo da vida. Dona Chica é uma sobrevivente e pode ser vista como uma desde jovem.  

Natural do Ceará, ela viajou da Paraíba, onde morava, a Caetité, a bordo de um pau de arara – caminhonete improvisada irregularmente como ônibus, coberta por lona. Foram cinco dias de viagem, com o marido, José, e os filhos. Um parente de Dona Chica tinha mandado avisar a ela que havia uma terra para eles viverem em Caetité.

“Era uma coisa medonha. Até estrada errada a gente pegou, até que chegamos ao lugar que íamos morar”, lembra.

Ficaram por lá “na roça dos outros”, por oito anos. Depois, mudaram-se para outra roça, novamente “dos outros”, onde trabalhou como agricultora até os 65 anos, quando se aposentou. Nessa mesma época, ela e José compraram uma terra própria. Antes, por onde passou, Dona Chica deixou uma cruz. “Sou amante da cruz, não sei porque, mas por onde passei deixei um cruzeiro. Faço questão”.  

A depressão nunca tinha ocorrido a Dona Chica, que se diz uma pessoa “alegre e animada”. Os filhos estavam sempre por perto até que o mais velho se mudou para São Paulo, há mais de 20 anos. Dona Chica também perdeu uma filha de um ano, vítima de sarampo, e teve um filho assassinado, em 1995. “Não me esqueço de nenhum dos meus filhos”.

Foi quando o terceiro faleceu vítima de suicidídio que ela sentiu a música querer ir embora dela. Mas, Dona Chica insiste e canta. “Perdi meus caderninhos, nessa mudança de um lugar para outro, e tenho que lembrar de cabeça”, fala.  

Em janeiro deste ano, uma filha e um neto da aposentada morreram em um acidente de carro. Desde o início do ano, ela tem acompanhamento psiquiátrico em Guanambi, cidade vizinha. “Ela [a médica] foi uma inspiração para mim e Deus me dá muito força. Eu tenho pessoas que me ajudam”, afirma Dona Chica, que também ajuda as pessoas. 

Uma mãe que reza

Às 6h30, Dona Chica está de pé para cuidar dos bichos, alimentar os passarinhos de visita e olhar as plantações. Durante a pandemia, ela se mudou para a zona rural, para ficar mais distante do movimento e dos riscos de se contaminar pelo coronavírus. José, que também está aposentado, acorda ainda mais cedo, “porque o costume não deixa a gente ficar deitado mais tempo”.

A religiosidade está presente em todo o dia dessa senhora que gosta de espalhar cruzes. Se sente o coração apertar, ela, que é católica, fecha os olhos e reza.

“Tem horas que as pessoas falam: você é uma melhor forte. Eu não sou forte, é de Deus, Deus nunca me deixou parar”.

No fim do dia, às 18h, ela liga a televisão para rezar o terço com o marido. Vizinha à casa, a capelinha pintada de branco é onde ela passa a maior parte do tempo. “A capela foi um presente que me deram e cabem dez pessoas dentro”, comemora Dona Chica. 

Dona Chica na sua capelinha, que fica vizinha à casa onde mora com o marido José
               (Foto: Acervo Pessoal)

Como frequenta igrejas católicas de Caetité desde pequena, sempre cantou músicas religiosas. Quando era criança, via a mãe cantar e, até hoje, lembra das canções favoritas dela. “Gostava e gosto muito de cantar”, recorda. 

Uma das coisas que ela não gosta é quando vê um passarinho preso, porque acredita que o pássaro é do céu, não das gaiolas. “Fico triste”, diz. Dona Chica se vê como um barco que oscila com o mar, perde a rota, mas navega em frente. Ela gosta de dizer: “Sempre me abalo com as coisas tendo uma vontade de viver”.  

Correio24horas